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De mulher a comida para formigas

(O vídeo pode chocar as pessoas mais sensíveis)

As formas de chocar o outro têm assumido configurações tão distintas, quantas as barbaridades que o ser humano faz a outros seres (humanos). As redes sociais têm contribuído para isso, embora, seja tanta a bizarria do mundo atual que os acontecimentos se atropelam uns aos outros. A bizarria/novidade dura pouco mais de umas horas, alguns dias, não mais do que isso e logo depois deixa de estar catalogado enquanto bizarria/novidade para entrar no segmento do “é normal”. Por esta altura encolhemos os ombros e pronto, o Planeta Terra continua a girar ao ritmo habitual e nós vamos andando até que surja mais uma bizarria/novidade, uns dias de indignação acompanhados de alguns post’s no Instagram ou outras redes que tais e logo passa a ser “o normal”, e por aí fora… enfim…


Bom, filosofismos à parte…


Sou entusiasta do envelhecimento e da velhice. Gosto de estudar todas as dimensões que a este processo e fase da vida estão associadas. Leio, escrevo, vejo muitas notícias, mas nada me tem preparado para isto. Sou um eterno questionador acerca das mais elementares expressões da vida humana, mas assistir a esta decrepitude dos valores do Ser Humano para com outro Ser Humano enche-me de raiva.


As imagens de maus-tratos a pessoas que me entram pela casa dentro envergonham-me profundamente, entristecem-me. Antes de continuar é importante recordar apenas que as pessoas que experimentam a fase mais adiantada da vida também são pessoas, - os velhos, os idosos, os gerontes, os seniores - e, também sobre essas pessoas o sentimento quando as vejo a ser molestadas é equivalente. Talvez mais pelo respeito e admiração que lhes tenho. Afinal, a liberdade que hoje usufruímos depende grandemente do seu altruísmo e ganas de viver em democracia.


Bom, tudo isto me levanta inúmeras interrogações. Uma delas tem de ver com a tendência natural da generalização. Existem estruturas residenciais coletivas para pessoas idosas que desenvolvem excelentes práticas. Existem excelentes profissionais do cuidado que fazem muito mais do que aquilo que o miserável salário os obrigaria a fazer. Mas também existem estruturas muito mal geridas por pessoas que decidem não investir na formação porque “para trabalhar com idosos qualquer coisa basta”. É por causa disto que imagens como as da senhora coberta de formigas curiosas, amarrada a uma cama e com feridas abertas onde lhe cabia um punho dentro permanecem. Mas não só. A culpa não é somente da SCMBoliqueime, nem tampouco da Sr.ª Provedora que atribui a culpa do sucedido às “(…) formigas que entraram debaixo da porta e foram ter com a senhora!”, ou que irá imputar responsabilidades e sanções “à funcionária que fez aquilo”. Se não fosse tudo tão surreal até me esforçava para rir! Mas afinal de quem é a culpa de tamanho desrespeito pela vida humana, e desconsideração pelas pessoas idosas? A culpa é de todos nós que assobiamos para o lado e achamos que algo semelhante jamais nos acontecerá (porque não chegaremos a velhos, mas também não queremos morrer novos); que dizemos que nunca colocaremos os nossos entes queridos num «Lar de Idosos». A culpa é de todos nós porque continuamos a ver as pessoas idosas como “utentes” (e neste caso não se trata de uma questão meramente semântica). A culpa é de todos nós porque continuamos a ver as pessoas idosas como um fardo ou uma despesa, como inúteis ou nada importados com o desenvolvimento económico e social do país. A culpa é de todos nós porque continuamos a achar que a culpa de não virmos a ter reforma no futuro é das pessoas idosas do presente. A culpa é de todos nós porque continuamos a achar que as pessoas idosas são todas iguais quando, na realidade, quem os faz “iguais” somos nós que achamos isso porque eles acham precisamente o contrário. A culpa é de todos nós, mas também do Governo. A culpa é do Governo porque não tem a coragem de colocar na agenda política as oportunidades e os constrangimentos que advêm da existência de um número cada vez maior de pessoas idosas em Portugal. Recordo que estamos no pódio do segmento de países mais envelhecidos do mundo. Do mundo! A culpa é do Governo porque vai correr atrás do prejuízo ao delegar na Segurança Social a tarefa de perceber o que aconteceu à mulher de 86 anos que estava coberta de formigas curiosas, amarrada a uma cama e com feridas abertas onde lhe cabia um punho dentro quando, na realidade, há muito tempo, muitos têm sido os especialistas que têm vindo a alertar o Governo para os problemas existentes e para as mudanças estruturais urgentes a ser feitas.


Acredito que não existem maltratantes de pessoas idosas. Acredito antes em maltratantes de pessoas. Porque quem maltrata uma pessoa idosa, maltrata outra pessoa com qualquer outra idade. A diferença está na fragilidade, na dificuldade em reivindicar os seus direitos e na dependência e necessidade de cuidados que caracteriza algumas pessoas que experimentam a fase mais adiantada da vida.


Não acredito que a solução passe por criar uma rede de «Lares de idosos» público. Isso levaria décadas a ser feito e, na minha opinião, as mudanças têm de ocorrer agora. E, convenhamos, não resolveria o quer que seja porque a génese do problema está no papel social que atribuímos às pessoas idosas e não tanto no número de instituições disponíveis. Existem milhares de estruturas e, consequente, capital humano de excelência, outro tanto menos bom, é verdade! Em qualquer dos casos a urgência passa por fiscalizar/monitorizar mais e com qualidade, formar mais in loco, formar mais nas escolas, formais mais nas comunidades. Acredito no poder transformador da partilha de conhecimento, por isso mesmo acredito que formar, formar, formar, resolveria uma parte significativa dos problemas. Mas também incluir. Incluir as pessoas idosas e torná-las parte da solução e não o problema.


Enquanto continuarmos a achar que ser-se velho equivale a senilidade, doença, passividade e morte certamente que veremos mais mulheres e homens mais velh@s maltratados e acharemos que isso é normal!


Termino com uma nota de pesar a todos aqueles e aquelas que já enterraram a ideia de que “O próximo posso ser eu ou um dos meus!”


Crédito do vídeo: Jornal de Notícias

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