ESTE É O MOMENTO | THIS IS THE MOMENT
Não bater à porta é mau-trato. Acender a luz do quarto sem motivo aparente quando a pessoa está a descansar é mau-trato. Higienizar uma pessoa sem verbalizar o que se está a fazer é mau-trato. Não permitir que a pessoa escolha a sua roupa é mau-trato. Amarrar uma pessoa a um cadeirão ou a uma cama sem prescrição clínica é mau-trato. Não garantir cuidado terapêutico (clínico e psicológico) a uma pessoa é mau-trato. Fornecer uma parca alimentação a uma pessoa é mau-trato. Violentar física e psicologicamente uma pessoa é mau-trato. Não acudir uma pessoa quando esta está em desespero, por exemplo querer ir a um WC, é mau-trato. Proibir que uma pessoa seja visitada pelos seus familiares e/ou entes queridos é mau-trato. Impedir uma pessoa de sair à rua é mau-trato. Encobrir, compactuar, não denunciar a existência de maus-tratos é crime.
Parece que uma grande parcela destes maus-tratos e crimes eram cometidos na ERPI no Vimeiro, concelho da Lourinhã que veio a encerrar. Mas a vida segue o rumo normal e, entretanto, já nos esquecemos disto tudo. Nada melhor do que recordar que o que acontecia neste espaço é só a ponta do iceberg. Existe uma realidade de cerca de 3 500 espaços ilegais que acolhem pessoas mais velhas que estão à margem da lei e todos nós sabemos disso, o poder político sabe disso e quase nada se faz. E a culpa é de quem? Nossa. Aplaudimos as medidas avulsas do Estado. Tiramos o chapéu aos meios de comunicação social por trazerem à ribalta estes temas, mas depois o assunto é ultrapassado por outra notícia qualquer.
O Estado tem um papel fundamental e preponderante na fiscalização da atividade e do funcionamento dos espaços que acolhem pessoas idosas, afinal uma grande parcela dos problemas foi motivado pela desresponsabilização e ausência de políticas públicas do envelhecimento. Mas a responsabilidade de cuidar bem do nosso património imaterial – as pessoas idosas –, também é nosso. É (moralmente) criminoso o que nós fazemos e deixamos que aconteça às pessoas mais velhas.
A atual crise que se assiste relacionada com a forma como os cuidamos das pessoas idosas é, sem dúvida, uma oportunidade para uma evolução ética da humanidade e também para uma renovação dos cuidados. Precisamos de fazer um esforço no sentido de interpretar o momento que estamos a viver e fazer diferente e, para isso, fica aqui a minha humilde sugestão:
O SNS tem agora um diretor executivo. O propósito da sua existência é, entre outros, encontrar soluções para os vários problemas existentes. Porquê não criar um grupo de trabalho interdisciplinar (composto por diferentes setores e agentes, por exemplo: as pessoas idosas, os familiares e/ou significativos, os cuidadores e as comunidades) e apoiado interministerialmente, à semelhança daquilo que se fez no Programa Idoso em Lar (PILAR) em 1997 e no Plano Avô em 2000, encarregue de fazer um levantamento exaustivo dos problemas associados aos cuidados formais às pessoas idosas, e executar medidas que permitam acompanhar e qualificar os trabalhadores das ERPI em prol de cuidados de maior qualidade e mais humanizados. Mas não pode ser um grupo de trabalho extemporâneo no tempo, e sabem porquê? Porque Portugal é atualmente um dos três países mais velhos da Europa e um dos cinco mais velhos do Mundo. E as projeções indicam que assim se manterá por umas longuíssimas décadas. Por tal razão, o que já havia de ter sido feito, tem de ser agora pensado e concretizado. A massa crítica existente é de excelência porque temos alguns dos melhores pensadores e executores na área da Gerontologia e a Geriatria, mas continua a faltar-nos união. As iniciativas perdem-se nas boas intenções e no facilitismo da rotina diária e, no concreto, pouco ou nada muda. Se a isto acrescentarmos que a importância política e económica das pessoas idosas é crescente, embora os recursos disponíveis para este grupo em termos de acolhimento e cuidados se revele insuficientes, traduzindo-se em perfeitos atentados à dignidade humana, pelo que posso intuir que em Portugal estamos a enfrentar um momento imbatível para adaptar o alojamento e o cuidado à população mais velha. Mas sobre isso falar-vos-ei num próximo texto!
Os nossos velhos, nós, as futuras gerações gritam urgentemente por uma mudança que começa no nosso m², mas também no poder político e na sociedade. Caso contrário, a maioria dos velhos continuam a morrer sem qualidade, sem dignidade, sem esperança, sem alegria. E os próximos somos nós.
Ricardo Crispim
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